terça-feira, 26 de abril de 2011

Comentário do professor Leônidas Portella sobre o espetáculo "Maria Menina no Caminho do Rio Vermelho"

"Maria Menina no Caminho do Rio Vermelho", sem dúvidas foi um marco na história do Grupo Cara de Arte, um espetáculo contagiante que se apresentou por várias escolas levando arte para crianças carentes de escolas públicas, trazendo também crianças para a arte, levando inúmeros jovens para o teatro. O que mais me encanta nesse espetáculo é a espontaneidade que as crianças conquistaram para representar a vida e os caminhos de aventuras que uma menina negra percorre para realizar seu sonho que é se tornar uma grande escritora, a cada cena sinto sabor da minha própria infância, das minhas fantasias, de um mundo que eu mesmo criava, cheio de cores, cheiros e personagens. Acredito que essa eterna sensação foi uma herança das minhas escolas, aquelas em que eu li e imaginei universos, era como se eu entrasse nos livros, a cada leitura subia nas árvores num mundo repleto de unicórnios, príncipes e princesas, eu me sentia um príncipe naquele reino que eu entrava a cada palavra. Com o resultado desse espetáculo vejo no quanto a leitura nos levou à lugares mágicos.
O processo criativo foi intenso e bem mais válido do que o produto "Maria Menina no Caminho do Rio Vermelho", na verdade o produto também vale muito mas ele é apenas o resumo de um processo que se construiu no decorrer dos três anos iniciais do Grupo Cara de Arte. Por trás da cortina, nos bastidores dessa história, foram conseguidos conquistas que valeram muito mais que singelos aplausos.
Lembro-me do meu primeiro contato com as crianças, eu era apenas um aluno do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Maranhão que estava na U.E.B Santa Clara para dar aula de dança em um projeto que se chamava "Maria Firmina - Memória, Gênero e Etnia na Cena Maranhense", uma iniciativa criada para trabalhar questões de gênero e etnia dentro da escola, tentar resgatar a auto-estima de meninas negras da comunidade Santa Clara dentro da escola, usando com referência a história da poetisa Maria Firmina dos Reis. A turma inicial era composta por apenas 13 alunas, a maioria negras. As aulas não impediam a participação dos meninos, mas outra questão maior impedia que isso pudesse acontecer, o preconceito não era apenas racial, imaginem só como a imagem do professor que ensinava as meninas a dançar se construiu na escola, onde apenas o futebol era "coisa de menino" e arte era "coisa de menina", cansei de ouvir comentários que colocavam em questão a minha sexualidade, comentários maldosos que vinham não só de alunos mas também de professores e até mesmo de pessoas da comunidade, comentários que apenas fortaleceram o minha vontade de trabalhar ainda mais por acreditar na mudança dessas posturas e pensamentos sobre o profissional de arte. 
Lembro-me da aluna que precisava faltar as aulas de dança e teatro para vender balas nos sinais e nos terminais do bairro São Cristóvão por obrigação da mãe, de outra aluna que faltava as aulas para cuidar dos irmãos mais novos enquanto a mãe saia de casa de madrugada para vender verduras na feira, de outra aluna que teve seu pai morto pela própria mãe por causa de um real, da aluna que presenciou o estupro da mãe, da aluna que deixou de fazer teatro por um tempo pelo assassinato do seu padrasto na avenida da Santa Clara. Lembro também de vários segredos que as alunas confiaram a mim e que continuam sendo guardados com muito carinho. Lembro-me do dia em que eu percebi que meu papel naquela comunidade já não era apenas cumprir com deveres da faculdade e sim me tornar um cidadão formador de cidadãos através da arte. 
A bolsa que eu ganhava como aluno da UFMA para dar aulas terminou quatro meses após o início do projeto, tive que continuar a minha história, desta vez em condições voluntárias, ou sem condições para ser bem mais direto, o que importa é que não deixei aquelas crianças sem arte.
Levei muitos textos sobre Maria Firmina do Reis para as aulas, conversamos sobre os direitos femininos, sobre a condição de ser artista, ética, estudamos o surgimento do teatro na grécia e aos poucos percebi as mudanças dos alunos na escola a partir de relatos de professores que antes não acreditavam nas minhas aulas, me teceram elogios sobre o desempenho dos alunos dentro da sala de aula, participação, melhor leitura, melhor convívio. Eu sempre acreditei nesse poder que a arte tem de atingir os outros setores humanos, foi assim que fui atingido por ela, num processo de formação de cidadãos que estão formando suas personalidades a arte tem uma função indispensável, por exemplo: uma criança que trabalha a dança passa a ter noção do espaço, logo aprende a respeitar também o espaço de outro corpo, tornando-se mais sensível ao toque, se ela descobre seu corpo e confia em si mesma, ela jamais confiará em alguém que usa outra intenção para tocar o seu corpo de outra forma, agressiva, evitando inclusive uma gravidez indesejada na adolescência ou até mesmo um estupro. A arte transformou o contexto escolar e social da comunidade Santa Clara.
Um dos dias mais emocionantes da história do "Cara de Arte" foi o dia da nossa primeira apresentação que aconteceu na quadra esportiva da U.E.B Santa Clara. Passei os dias anteriores da apresentação na casa de Mari e Gisa, fazendo tingimentos dos figurinos, cortando e costurando tudo com as próprias mãos, eu nem sabia costurar mas aprendi naqueles dias, era um tecido bege, sacos de pano-cru que foram comprados no Mercado Central de São Luís, um material improvisado que foi planejado para durar apenas uma apresentação (durou umas cinco). Na tarde daquela apresentação a comunidade Santa Clara estava em peso, pesando sobre as arquibancadas, uma mistura de pais, familiares, alunos da escola e professores reunidos para ver a primeira atuação dos participantes do projeto.
As crianças entraram na quadra e foram vaiadas por outros alunos da escola, elas choravam e me imploravam para não apresentar mais, tentei acalmar dizendo algo semelhante a "se estão vaiando é por que ainda não conhecem o nosso trabalho, agora vamos lá arrancar os nossos aplausos dessa platéia".
Nos primeiros minutos da apresentação ouviam-se comentários de todas as espécies, até o diretor da escola me pediu para desistir, nos minutos seguintes a platéia silenciou, foi quando percebi que a arte estava comunicando e "começando a entrar na mente das pessoas", no final da apresentação nada mais se ouvia além de gritos de satisfação, aplausos que acompanhavam o ritmo da música, sorrisos estampados nos olhares das pequenas artistas, lágrimas de mães percorrendo por todos os cantos.
O momento foi único, mágico e inesquecível.
Naquele dia ganhei respeito na escola, os professores me olhavam de outra forma, o diretor me cumprimentava com satisfação, ganhei mais umas dezenas de alunos inclusive muitos alunos do sexo masculino, e quanto aos pais.... esses foram sempre maravilhosos comigo, ganhei prestígio dentro da comunidade, ganhei espaço para trabalhar, espaço físico e também psicológico pois a pressão foi grande. Um dia as crianças insistiram para eu ficar mais um turno dando aula, tentei negar o pedido afirmando que  tinha que voltar para casa almoçar e como minha residência era no centro da cidade (há 50 minutos do bairro Santa Clara e mais uns 30 esperando o onibus) não teria como voltar, não aceitaram minha justificativa e prometeram me trazer o almoço, não tive como recusar a proposta, além eu já tinha aprendido a confiar em promessas de crianças.
Fui surpreendido com a atitude das mães, me trouxeram várias pratos de comida, formando um banquete ao meu redor, tive que provar cada prato para não fazer feito, aquele foi o dia em que eu mais comi em toda minha vida. Um momento como esse não poderia ficar de fora, foram atitudes simples como essa que me revelaram meu verdadeiro valor humano. Refleti por um bom tempo sobre meu papel naquela comunidade. 
Houveram outros momentos importantes na nossa história como as apresentações em hotéis, universidades, na II e III Feira do Livro de São Luís e principalmente a circulação de Maria Menina por outras escolas da rede pública de ensino promovendo o acesso de outras crianças carentes à arte. A formação desse grupo proporcionou mais do que um processo de experimentação em arte mas também contribuiu para a formação histórica, social e humana dentro e fora da comunidade Santa Clara.
Gostaria de relembrar outro momento crucial na nossa história, foi a participação do "Cara de Arte" no FETRAN - Festival de Teatro para o Trânsito em 2009, onde criamos uma peça intitulada de "Calhambeque Bi Bi", um espetáculo que usava a música de Roberto Carlos como inspiração, onde a imagem do calhambeque cantado pelo rei se relacionava com questões de consciência e educação para o trânsito, esse espetáculo trouxe para o Cara de Arte o Prêmio de Melhor Espetáculo do Festival.
Após esse prêmio, por questões éticas, me desliguei da U.E.B Santa Clara, com pretensões de continuar o projeto de formação de jovens artistas numa outra perspectiva, foram cinco meses sem atividade, senti muita falta das crianças, falta do hábito de educar, falta de sorrisos, de verdade, os cinco meses pareceram cinco anos.
Em abril de 2011, consegui reativar o projeto contando com o apoio do Teatro Arthur Azevedo e o patrocínio de um padrinho do exterior que sentiu-se sensibilizado com a história do grupo. Uma nova fase dessa história também mereceu um novo nome, na comunidade Santa Clara o grupo se chamava "CARCARARTE" e agora somos os "CARA de ARTE", juntamente com essa nova fase resolvi criar esse Blog para postar uma parte das minhas experiências enquanto professor e diretor de teatro e dança.
Atualmente, o "Cara de Arte" está trabalhando numa perspectiva de formação de jovens artistas educadores onde os participantes serão formados para atuar com atividades artísticas dentro de comunidades carentes de São Luís, podendo também assumir futuros papéis de pesquisadores em arte. Estamos retornando nossas atividades contando com a integração de 20 jovens artistas, trabalhando técnicas de teatro a partir de textos teatrais das autoras brasileiras Maria Clara Machado e Sylvia Orthof e técnicas de dança com estudos pautados no movimento Laban, estudo de ritmos populares e Lendas de São Luís.
Estou muito feliz com o retorno das atividades e espero que nosso futuro seja encarado com respeito, compromisso, disciplina, educação e muitas Caras de Arte.

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